sexta-feira, 25 de setembro de 2015















Avó de todos

O seu vulto por detrás da cortina fazia como que uma imagem de nossa senhora iluminada. Véu transparente que separava o mundo novo do mundo antigo. Com olhar astuto conseguia-se ver por vezes o seu ar intrigado e a sua perpétua guarda à antiga casa.
A queda traiçoeira e envolta numa tontura fatal, fizera com que a vida lhe conferisse a certeza de que sozinha e naquela idade não se pode ser autónoma e simplesmente viver, com toda a solidão que a vida lhe impôs. O anexo foi feito e a avó prontamente se instalou mais próxima da mão que a poderia levantar. Ao abrir a sua nova janela, abraçava de uma só vez a sua antiga casa. Em frente via a traça das suas janelas, o trabalhado dos seus varandins e a porta fechada. É difícil deixar a nossa casa! A casa onde viveram tantas pessoas, uma casa viva, onde as recordações nunca acabaram e onde de lá nunca ninguém saiu. As árvores de amoreiras em cada extremo ladeavam o terreno, fortes e apontando a Deus os seus ramos. As árvores de araçaís, salpicando a relva de amarelo, fazendo as delícias dos melros pretos. A canada de calçada gasta, guardava a sombra da enorme nespereira. As boninas laranja nunca se esqueciam da primavera e a roseira de rosa pálido, dava sempre um pequeno bouquet em esforço.
Quem vive 88 anos, vive várias vidas e vive também um bocadinho na vida dos outros.
Após a sua partida, a minha memória teimou em vê-la no jardim apanhando num movimento quase lento a ervinha que vingou. O seu chapéu de palha tomava-lhe os ombros e fazia-lhe sombra aos primeiros raios de sol. O croché permaneceu em cima da mesa em pause… ainda sinto o gosto da linha ao preparar-lhe as agulhas enfiadas com linha para os trabalhos de costura. Sentada na marquise de óculos escuros, porque esta luz por vezes também era demais, a vida tinha-lhe escurecido quando aos 32 anos ficara sozinha com a filha e com a máquina de costura. Juntava aos seus dias o terço e entre cabeçadas adormecidas, retomava a reza… umas vezes mais à frente, outras vezes mais atrás. Mas a certeza da proteção da família que implorava a Deus, bastava-lhe.
Este quintal parece um pequeno refúgio, desconhecido de todos e por si só único!
Hoje eu no mesmo jardim, pela sua mão, paro no passo repenicado do melro preto, envolvida na folha que cai da árvore que range, no cheiro da terra que me puxa e na certeza que vivo uma premonição. Caminho num destino que me foi oferecido.
av
25.09.15