quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017




Caminhada da saúde

Os 3 “cerditos”, cavam na areia junto ao mar, um buraco invisível pronto a servir-lhes de cova. Mas impera a aposta :
 - O que perder a barriga primeiro paga um jantar de leitão com batatinha estaladiça e um “cabeça de burro” para não destoar… ah, ah, ah.
 Empurrada pela brisa não se ouve outra coisa que não seja:
  -  Mira que hermoso paseo! Fomos invadidos finalmente!
 Na linha da frente um casal que vai chegar longe, longe e mais longe, já passaram por mim 3 vezes… encadeia-me aquele rosa florescente da blusa de lycra da senhora e aquele defeito na sola da sapatilha do pé esquerdo que teima em se deitar para o lado de dentro (desvio na coluna).  E eu lenta, mas firme, caminho no passeio marítimo. Porque a caminhada para tudo serve. Dizem que faz bem.
O senhor da bicicleta todo equipado vai veloz, e estafado faz uma pausa  no final da meta e fuma um cigarrinho, tirado de um maço que mostra um pulmão esmagado pelo fumo. E passa o casal de que falei anteriormente, sempre em frente, com dois pingos, um de cada lado da fonte…é merecido! Agora a parte mais difícil é o pontão, exige equilíbrio, ordem, e claro alguma perspicácia em tentar adivinhar para que lado vou ter de me desviar para não chocar de frente. Isto porque as pessoas tem o seu propósito, andar sempre em frente, em grupo e sem olhar a mais nada, compreende-se. A união é assim! Ao longe o grupo de senhoras que balançam os braços como pêndulos de relógios, mas ao contrário do corpo, pergunto-me como conseguem aquela coordenação perfeita, cheira-me a Zumba, faz milagres! Temos as gémeas, que não falham, invertem as cores dos fatos só para não parecer combinação, mas foram comprados no mesmo site e fizeram-no juntas para poupar nos portes. Conseguiram o tamanho small. Pessoas de sorte!
Eu sempre no meu passo lento e farto.
Até ao anoitecer é hora de caminhar, e vai a senhora do coro, a senhora trabalhadora, a senhora fina com cheiro a perfume e vou eu lenta.
No outro dia já não vou caminhar, está a chover que chatice! E além disso não me posso constipar, uma pessoa tem de trabalhar não se pode dar ao luxo de espirrar na manhã seguinte. E chega novamente o dia em que o fôlego volta, o raiozinho de sol empurra e começa tudo outra vez!
A.V
16.02.17

quarta-feira, 3 de agosto de 2016




Cavalo de cortesia

Quando a calçada me foge no primeiro olhar de esguelha, o “Bom dia!” sai afónico e logo se fecha. O início do dia exige-me o cumprimento da boa educação. A pessoa rotineira, o velhinho que gasta o tempo, a senhora que vai à praça e o funcionário da câmara que varre as primeiras folhas do dia. Por último o senhor “acastanhado”, que não espera tal simpatia, mas responde quase no fim. O “Bom dia” da senhora do café que já vive desde cedo, e com a novidade pronta me serve o café e pergunta se estou boa, e eu no meu adormecimento dantesco faço que não a ouso. Chega o senhor professor, que no seu tom amável, nos faz acreditar que se pode ouvir baixo. Encontra-me o olhar e faz a introdução simpática de quem vive no futuro. E no rasgar do pacote de açúcar, penso em como são belas as pessoas que me rodeiam! Cada uma com a sua nuvem, cada uma com o seu sal, e cada uma com a sua entrega. E damo-nos todos uns aos outros quando partilhamos algo, sem filtro, sem receio. Espera-me a pessoa mais forte e resistente que conheço, pessoa que amassam mas logo leveda, valente e de humor inato, faz destronar o rosto mais sério e sente-se no coração toda a sua grandiosidade. Pergunto-me se será disto que terei saudades um dia quando partir e deixar no passado o retrato emoldurado, de um bocadinho que foi a minha vida? Serei eu capaz de ver ao longe um pedaço de terra, cheio ele de tudo o que há em mim. Rocha, mar e verde. Com certeza que sim. Acredito que sim!
av
03.08.16






sexta-feira, 25 de setembro de 2015















Avó de todos

O seu vulto por detrás da cortina fazia como que uma imagem de nossa senhora iluminada. Véu transparente que separava o mundo novo do mundo antigo. Com olhar astuto conseguia-se ver por vezes o seu ar intrigado e a sua perpétua guarda à antiga casa.
A queda traiçoeira e envolta numa tontura fatal, fizera com que a vida lhe conferisse a certeza de que sozinha e naquela idade não se pode ser autónoma e simplesmente viver, com toda a solidão que a vida lhe impôs. O anexo foi feito e a avó prontamente se instalou mais próxima da mão que a poderia levantar. Ao abrir a sua nova janela, abraçava de uma só vez a sua antiga casa. Em frente via a traça das suas janelas, o trabalhado dos seus varandins e a porta fechada. É difícil deixar a nossa casa! A casa onde viveram tantas pessoas, uma casa viva, onde as recordações nunca acabaram e onde de lá nunca ninguém saiu. As árvores de amoreiras em cada extremo ladeavam o terreno, fortes e apontando a Deus os seus ramos. As árvores de araçaís, salpicando a relva de amarelo, fazendo as delícias dos melros pretos. A canada de calçada gasta, guardava a sombra da enorme nespereira. As boninas laranja nunca se esqueciam da primavera e a roseira de rosa pálido, dava sempre um pequeno bouquet em esforço.
Quem vive 88 anos, vive várias vidas e vive também um bocadinho na vida dos outros.
Após a sua partida, a minha memória teimou em vê-la no jardim apanhando num movimento quase lento a ervinha que vingou. O seu chapéu de palha tomava-lhe os ombros e fazia-lhe sombra aos primeiros raios de sol. O croché permaneceu em cima da mesa em pause… ainda sinto o gosto da linha ao preparar-lhe as agulhas enfiadas com linha para os trabalhos de costura. Sentada na marquise de óculos escuros, porque esta luz por vezes também era demais, a vida tinha-lhe escurecido quando aos 32 anos ficara sozinha com a filha e com a máquina de costura. Juntava aos seus dias o terço e entre cabeçadas adormecidas, retomava a reza… umas vezes mais à frente, outras vezes mais atrás. Mas a certeza da proteção da família que implorava a Deus, bastava-lhe.
Este quintal parece um pequeno refúgio, desconhecido de todos e por si só único!
Hoje eu no mesmo jardim, pela sua mão, paro no passo repenicado do melro preto, envolvida na folha que cai da árvore que range, no cheiro da terra que me puxa e na certeza que vivo uma premonição. Caminho num destino que me foi oferecido.
av
25.09.15





quarta-feira, 12 de agosto de 2015





Não lhe dei tudo

Não lhe dei tudo o que me pediu, porque achei que seria demais. Dei-lhe o espaço que precisava para caminhar seguro e de encontro ao que era seu por direito. Deixei-o caminhar à chuva de botas de borracha, chapinhou e fez respingar a água das poças em todas as direcções. Andou de bicicleta de capa de chuva, completava com o balde de praia na cabeça e na mão direita o guarda-chuva que lhe assegurava o equilíbrio perfeito. As pestanas seguravam os pingos da água persistente e pestaneava para limpar a visão. Disse-lhe que não ao muro alto, mas deixei-o ver o que estava depois dele… o mar! Senti-o livre em cada passo escorregadio que dava para apanhar a alga no vai e vem da maré. As pedras que apanhou e o alcance que conseguiu ao atira-las tinham uma força desmedida. Pensei que toda a sua vida estaria nessa distância. E está. Hoje, grande na sua visão, calado na sua opinião, enfrenta um mundo diferente do alcance do mar que sempre viu, mete-se nele e sente toda a sua profundidade. Sinto-lhe na distância o pensamento perdido, o esforço por se equilibrar, o passo certinho que lhe é exigido, sem dó nem hesitação. É assim que tem de ser. Os dias passaram rápido e no meu pensamento contínua a delicadeza daquela mão pequenina, a presença de tudo o que é genuíno e intacto… o sorriso limpo, o abraço apertado. Tenho de o deixar ir… vai!
av
12.08.15


domingo, 2 de agosto de 2015


HUMILDADE

Os meus olhos arregalaram quando me perguntou o significado da palavra humildade.
E na volta que o pensamento deu ao peneirar a palavra e tendo em conta a sua própria simplicidade… não consegui fazê-lo sem que esta não se colasse à palavra pobre. E ser-se humilde não é forçosamente ser-se pobre, antes pelo contrário. O meu espanto foi saber que se estuda tanto, e na pauta vem em tom de sentença: “O aluno atingiu os objectivos propostos”. Que objectivos? Que objectivos propostos foram estes que deixaram a palavra humilde de fora? Muito mau! Mas a mais brilhante das constatações é a facilidade com que os miúdos de 2 anos pegam num tablet e deslizam o dedo rápido com a certeza de tudo e seguros no olhar babado dos pais. Temos crianças que não gostam de ler, falam-se por mensagens e estão cada vez mais inseguras. Com tanta evolução informática e acesso a ela, as famílias continuam caladas ao jantar, e já nem é preciso beijar nem abraçar, porque está tudo dito. O futuro é o que interessa, e há que conseguir, para poder ser! Um engano. A evolução do ser humano faz-se a cada dia que passa e a seu tempo. Valores simples e o desenvolvimento do pensamento são urgentes, a alma precisa muito mais de alimento, do que o próprio corpo. Existe um vazio inato na sociedade, onde deveria ser congénito o afecto. Começando pela atenção que todos merecemos uns dos outros, à simplicidade de se ouvir quem quer falar, do acenar com a cabeça em solidariedade…da mão que posa no ombro…sem mais nada. Ninguém tem tempo para isto… é demasiado simples e requer grande cedência e humildade. Afinal relevo o puto não saber o significado da palavra, é vergonhosamente aceitável… pior são os que a conhecem e fogem dela.

 25.07.15
av

domingo, 11 de janeiro de 2015


Cegueira colorida

Trazendo consigo uma cegueira quase uterina, transforma a sombra na pessoa e confirma com a voz a sua intuição. A incapacidade de ver tolda os pensamentos mais livres da simples contemplação de uma paisagem. 

O mar assusta no seu rugido, e a noção da sua frescura é nula. A natureza negou a ela quase tudo. Negou-lhe a leitura prematura: “A pua é do papá…” - "O menino leva o popó…”. Insignificante, descabido e desnecessário.

Aprendeu a ler decorando a sequência de letras que saltavam e baloiçavam como se de um comboio a descarrilar se trata-se. Ela pensava que ver era assim. Ver fosco e tremido.

Era pequenina, morena de óculos fundos e cheia de sonhos com névoa.

A infância tem uma delicadeza de colo seguro e de abraço eterno. O cheiro que fica de uma criança perdura infinitamente, deixando impregnada a nossa memória. 

A vida insiste-se e com ela arrasta a sina de cada um. Crescer e amadurecer na contínua cegueira de que aquilo que se vê é apenas e unicamente aquilo que há para ver. Pouco…muito pouco . 

A liberdade segura-se nos passos que embora a medo nos levam a algum lado…a um lado que pode existir, mas não se vê.

11.1.15
av
Pienso que todos estamos ciegos.
Somos ciegos que pueden ver,  pero que no miran.

José Saramago