domingo, 7 de dezembro de 2014


O mar que leva

Leva o mar
o que é teu e herdaste
da semente que fica
Brilho de prata
rasgo no céu
Finda a tarde
na brisa que morre
Salmão que emoldura
castelo nosso
Vida presa
sem grade nem janela
De braços aos céus
Implora uma vela
cheia de vento
Aponta o horizonte
começo de vida
Adeus no coração
Que comece a viagem!

(Ana Vargas)
30.09.2013

sábado, 8 de novembro de 2014


Mestre Feijó

Viver num bairro, não é o mesmo que viver lado a lado e dar um “bom dia” esporadicamente. Num bairro as pessoas são uma família em ponto grande e como tal sabem umas das outras, sem rodeios e sem peneiras. Todos se conhecem por alcunhas… ali mora a “Luisa tá nem nem” (estava sempre grávida), a seguir o “Jaime da Alda”, e no nº 45 o “António da Jangaia”.  Brilhante!!!

De manhã as janelas abrem-se e o gato sai. O pão cheira dentro da saca e os filhos são muitos. O sol nasce e a montanha eleva-se do mar como um foguetão. Bem cedo mestre Feijó apresenta-se junto da sua lancha pronto a mais um dia de balanço.

“Espalamaca” foi a lancha que durante anos fez a travessia entre o Faial e  Pico e mestre Feijó fazia parte da tripulação. Chegávamos à lancha de manhã cedo, o frio ainda era medonho e no mar o gasóleo desenhava cavalos marinhos com nuances arroxeadas, desmaiando num azul magnifico com fios de prata... o meu olhar perdia-se!

Mestre Feijó com um pé na borda da lancha e outro em cima do cais, dava a mão às crianças e senhoras, porque os homens não precisavam. Depois de confiar a minha mão na mão deste amigo, aguardava a subida da vaga para que a borda da lancha se nivelasse com o cais, a fim do meu “salto” ser perfeito… E era! Eu achava aquela entrada em “salto” digna de uma artista de circo!

Minha mãe ao dar a mão a mestre Feijó perguntava:
- Como está o mar? (eu ficava a pensar que era giro cumprimentar o mar!?). 
Mestre Feijó dizia envolto num disfarce e um sorriso trocista de quem se preparava para mentir:
 - Vai dentro rapariga! O mar está bom, o mar está bom!!!”

Não acreditávamos nele!

Instantes depois deixava-me absorver pelo cheiro estonteante das ameixas que de tão maduras, embriagavam qualquer um.
E lá íamos nós, numa viagem que para mim encantava mais pela sua chegada e no pé firme em terra.

Para trás ficava o mestre Feijó e a verdade de que existem viagens que duram o tempo que nós durarmos…

av

08.11.14

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Ser mau é bom

 Nunca me senti tão extasiada com tudo o que vejo no dia-a-dia das pessoas. Tenho vivido momentos de desânimo puro em relação ao ser humano como pessoa e em toda a sua essência. Desalento sincero.
Toda a minha vida me pautei pelo que observei e pelos exemplos que tive como conduta moral, vi um pai que trabalhou exaustivamente, abafando com a mão o toque do despertador, nunca falhou a uma escala dos muitos aviões, tendo mil e uma funções no seu trabalho, vivendo em constante espiral, entre o que pensava (sonhava) e os filhos que o esperavam à mesa. Lembro-me de ir ao seu encontro, nos dias maçadores do PBX e em momento nenhum era esquecido o hastear da bandeira. Tudo era feito com o sentido da responsabilidade e o trabalho era uma dádiva que merecia respeito. Admirava-o… a minha mãe em casa começava o dia à mesma hora, as hortaliças frescas da praça já estavam lavadas e faziam a sopa simples, que todos comiam e ninguém dizia que não gostava. Não quero com isto parecer que fiquei naquele tempo e que não vejo nada de bom no presente, mas fico chocada todos os dias com o rumo do meu país.
Deparo-me todos os dias com faltas de respeito, lixo no chão, esta coisa estranha de ficar transparente nas passadeiras, de me levarem o ombro e a mala atrás de si quando teimam em não dividir o passeio comigo. Esta moda de não se olhar as pessoas nos olhos… Esta coisa feia de se falar ao telemóvel a toda a hora, em que a vida das pessoas é soprada para o ar sem pudor e sem reservas. Porque raio é que eu tenho de saber da vida delas? Esta queixa constante de falta de trabalho, e o que eu mais vejo é malandrice disfarçada. Tanta hipocrisia, muito teatro. Este consumismo libertino assente numa falsa modéstia. É importante parecer que é, ter, mostrar, representar, iludir. Mais parece um circo, em que aquele que se atrever a “pensar” será o primeiro candidato a “domador de feras”( e na revolta do leão enjaulado, será comido). Os que mais desiludem são os mais premiados.
Não há tempo a perder, saiu o último modelo de telemóveis da Apple e há que comprá-lo (mesmo que não se possa). Que se lixem os valores… Na escola os professores com certeza ensinam estas coisas…ou não!?

24.10.14

quarta-feira, 27 de agosto de 2014


A fala do silêncio

Hoje a chuva é um assombro tendo em conta o mês.
É compassada e faz-se sentir aleada da natureza. Falar e dizer o que se tem a dizer e fazer com isto um emaranhado de letras que ecoam e tem som. Era sempre assim… ficavam sentados lado a lado na noite que silencia, apontando com o dedo ao longe a luz que rodava a cada 2 segundos (o farol), avivando a memória de quem o fintou. Deixar-se ficar sem mais nada, sem a pressa do fim do dia, tendo cada hora a preciosidade de ser um momento único. Cada hora que vivemos é ímpar, Deus não nós deu a permissão de a repetirmos, castigou-nos…e porquê? Nem tão pouco a hipótese de o corrigir e com isso revive-lo. Não. Basta hoje o silêncio em que se diz nada, mas tudo ficou dito. Nem um abraço, nem a pieguice do apego, silêncio…silêncio que é bom.

17.07.14
av
 

sábado, 31 de maio de 2014




O aventureiro
E eu nem sabia que a palavra “aventureiro” abarcava, milhas náuticas, vagas, mar alteroso, nascer do sol, por do sol, chuva, vento, sal, azul, mar, mar e mar…
Via-se ao longe um mastro e um casco branco que baloiçava ficando um dos lados submerso na água. A ajuda no cais era pronta, os miúdos esperavam o atirar do cabo e os adultos também. Depois…era o primeiro salto a terra, o primeiro contato e ouvia-se:
 - Bonjour, ça va bien? E ficávamos estarrecidos, sem resposta:
Pensávamos, são “aventureiros”!. Diziam alguns entre dentes, mas sempre sorrindo. Apertos de mão, fotos em grupo e a primeira bandeira oferecida para a coleção do viajante. Estes “aventureiros” como lhes chamavam, vinham de todas as partes do mundo, dai o seu nome. Embora a língua fosse diferente, isso não fazia com que a sra. Rosa não trouxesse na sua ida ao pão um dúzia de ovos para lhe oferecer. Sempre ia a acima do cais e via se eram muito diferentes dos outros que tinham lá estado na ilha na semana anterior.
Eram parecidos. Cabelo aloirado, seco, com salitro, pele queimada pelo sol. A roupa presa com molas coloridas num dos cabos do veleiro, espantavam-se ao vento. Havia vida naquele veleiro, cheirava a comida acabada de cozinhar, o cão ladra e o menino de olhos azuis andava na borda do veleiro. Sempre me intrigou este viver em cima do mundo, sendo o mar o chão e o percurso a seguinte uma nova vida. Fascinante! Seriam estas pessoas como nós? Açorianos? Talvez sim…nós também vivemos em cima de “veleiros fixos” no meio do oceano, baloiçamos com as nossas angústias, com as nossas perdas e as nossas dúvidas. Esperamos ansiosamente aquele dia de sol, em que o corpo reage, molda-se, agita-se e os olhos ajustam o dia. Lembro-me de ser pequena e ver entrar o meu pai pela porta dentro à gargalhada, trazendo com ele “gente estranha”. Convidava iatistas (“aventureiros” ancorados na baia), para almoçarem na nossa casa, eu reparava que embora o meu pai não falasse o francês, eles entendiam-se muito bem e riam-se sempre ao mesmo tempo depois de alguma piada! Era giro vê-los rirem-se das mesmas coisas. Eramos uma mesa com convidados exóticos, que gostavam de tudo o que lhe dávamos a provar. Ficávamos como indígenas a ver as reações deles a cada prova, a simplicidade imperava e em breve aqueles “aventureiros” nos pediriam a morada para nos enviarem um postal de França. Ficava na porta a dizer adeus a pessoas que sei que nunca mais veria. Era sempre assim! Esta infância que me acompanha, tudo o que me lembro tem um misto de inesperado, irreverência, simplicidade e cómico. É um legado muito forte que me aperta o coração e me dá uma saudade enorme.
30.05.14
a.v.

domingo, 23 de março de 2014

 
O perfume
Entreguei-lhe as cartas já certas da viagem a fazer, bastava apenas o seu aval. Inspirou no ar o percurso que eu havia feito desde a porta de entrada até ao balcão e fez-se rogado…aventurando-se na pergunta. Pergunta essa assente num misto de exclamação e bisbilhotice:
 - Que perfume tão bom!?
E acenou ao mesmo tempo com a cabeça como que me influenciando na minha concordância. Sai do meu aluamento de sexta-feira e despertei nas suas palavras. Estávamos num momento de cumplicidade. Aceitei-o simplesmente. Estes momentos de pura partilha dão-me mais a mim, do que horas de escuta, através de um telemóvel que toca sempre com a mesma música.
Resolvi usar do meu tempo e ser gentil com ele. Eu nem sabia bem o nome do perfume… é assim, como muitas outras coisas da minha vida que as tenho mas não sei bem como e porquê?
Na loja onde comprei o perfume diziam que seria uma “aproximação” a uma grande marca e um grande aroma. Sim era! Continuamos, e no meu há vontade abri a mala e tirei o perfume e ofereci a surpresa aos seus olhos. Todo ele se dilui-o num sorriso e as mãos estenderem-se como que a pegar na melhor invenção olfativa. O gesto foi inato…ao balcão dos CTT estávamos a partilhar um aroma, que ele fez esguichar de imediato direito ao dorso da sua mão e num breve fechar de olhos… encostou a mão ao nariz... e viu-o reconhecer e apagar-se nas flores frescas do sereno, no limão acabado de espremer e na folha da lima. Entregou-se… Estava a ser fantástico aquele momento, eu e uma pessoa que conheço faz muitos anos atrás daquele balcão, em que anos a fio, nos cumprimentamos cordialmente e naquele momento, vivamos uma cumplicidade solicitada por ele e aceite por mim. Encheu-se de coragem e concluiu que aquele perfume embora de senhora adequa-se perfeitamente aos homens. Sorri. Devolveu-me o perfume voltei arruma-lo na mala e pensei nas coisas mais espantosas que me acontecem na vida. Partilhar o meu perfume com o senhor dos CTT.

av
23.03.14

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014








 Âncora
Largava a mão…e corria como se atrás de mim corresse uma multidão. Aguardava-me o assento daquela âncora, côncavo, castanho, áspero, frio e feito para ancorar parte da minha infância. Fiquei ali gravada para sempre. Avancei, com a certeza de que ali ficaria esperando os demais que por ali passassem. O pai de mãos atrás das costas, baloiçando ao sim de cada passo, avançava. Esperava-o à distância de um abraço e arrancava logo de seguida, para apanhar a outra âncora que seria a última. Uma última âncora na minha vida.  
av
25.02.14